A agricultura portuguesa e europeia e os novos desafios – pela Estratégia Do Prado ao Prato
Um Parecer da PLATAFORMA TRANSGÉNICOS FORA
Por Jorge Ferreira
A estratégia da Comissão Europeia “Do Prado ao Prato / From farm to fork – Our food, our health, our planet, our future” (EC, 2020), é importante e necessária para que a agricultura faça cada vez mais parte da solução (ambiental, climática, económica, social, sanitária) e não do problema. E ainda é mais necessária em tempo de crise (energética e de guerra), pois uma agricultura mais ecológica é uma agricultura mais eficiente, menos dependente de fatores de produção externos e quase tão produtiva como a convencional (Ponisio LC, et al 2015) e, nos países menos desenvolvidos, até mais produtiva (Badgley C, et al 2007).
Por isso convém refletir sobre os 5 objetivos específicos que aí são identificados e aplicar esta estratégia em toda a Europa nos próximos anos, ao contrário do que algumas organizações em Portugal defendem.
1.Assegurar que os europeus têm acesso a alimentos saudáveis, economicamente acessíveis e sustentáveis
A saúde humana começa na saúde do solo agrícola. E a saúde deste depende principalmente de duas coisas – da sua grande biodiversidade (muitos macro e microrganismos num ecossistema complexo, mas frágil) e do seu teor em matéria orgânica estável ou húmus, proporcional ao sequestro de carbono. E essa complexa biodiversidade é muito afetada principalmente por, falta de matéria orgânica, excesso de mobilizações, e presença de pesticidas (incluindo herbicidas) no solo.
Importa por isso dar maior prioridade a práticas agrícolas que permitam fertilizar o solo com carbono e reduzir a aplicação de adubos e pesticidas de síntese química. No caso português, a proteção integrada das culturas, prevista na Lei nº 26/2013, tem de ser aplicada em toda a agricultura nacional, usando os pesticidas agrícolas como complemento e não como o principal meio de proteção fitossanitária. Por exemplo, na produção de maçã pode evitar-se a aplicação de fungicidas, desde que se cultivem variedades resistentes à sua principal doença, o pedrado, pois já existem muitas e boas variedades com essa característica (fig. 1).
Para aumentar a sustentabilidade da produção alimentar europeia é preciso também uma redução no consumo de carne, pois é necessário muito mais terra (cerca de 6 vezes mais) para alimentar o mesmo número de pessoas entre uma dieta fast food e uma dieta vegetariana. Com uma dieta mediterrânica com a carne incluída, mas de produção animal extensiva, com raças autóctones e sempre em complemento e não como base da dieta, ficamos a meio quanto à necessidade de terreno agrícola para alimentar a população e para reduzir as importações de alimentos.
2.Combater as alterações climáticas
Atualmente, o problema é que, para além dos gases com efeito de estufa (GEE) de origem natural, a atividade humana desde inícios do séc. XX tem emitido para a atmosfera diversos GEE, que aumentam a retenção de calor provocando o recente aquecimento global do planeta Terra, principalmente o CO2, o óxido nitroso (N2O) e o metano (CH4). Em 2018, as concentrações médias globais eram as seguintes: CO2, 407,8 ± 0,1ppm (partes por milhão); CH4, 1869 ± 2 ppb (partes por bilhão) e N2O, 331,1 ± 0,1 ppb e as taxas médias de crescimento nos últimos 10 anos corresponderam, respetivamente, a 147%, 259% e 123% dos níveis pré-industriais (WMO, 2019).
2.1. Carbono e dióxido de carbono (CO2)
Dada a emergência climática atual, a agricultura tem de ser parte da solução e não do problema. Para além da redução dos gases com efeitos de estufa, é preciso aumentar o sequestro de carbono, pois a agricultura tem a fábrica que permite fixar o CO2 da atmosfera e convertê-lo em carbono orgânico. A fábrica é a planta e o processo é a fotossíntese!
O aumento de 1% (um ponto percentual) de matéria orgânica no solo corresponde a cerca de 30 toneladas de carbono orgânico por cada hectare, o que para uma SAU nacional já superior a 3.600.000ha, corresponde a mais de 100 milhões de toneladas de carbono retirado da atmosfera (CO2) e colocado no solo.
Por outro lado, se ao contrário de aumentar a matéria orgânica do solo ela for reduzida, então em vez de sequestro temos emissões, o que tem acontecido em muitos solos em Portugal nas últimas décadas, pela substituição dos corretivos e adubos orgânicos e das adubações ou estrumações verdes (green manure), na forma de culturas de cobertura (cover crops), pelos adubos químicos.
Em Portugal a maior parte do solo agrícola tem um teor baixo a muito baixo de matéria orgânica. A título de exemplo, o teor médio na área de regadio de Alqueva é de apenas 1,17% segundo dados da EDIA.
Uma das formas mais ecológicas de produzir matéria orgânica é fazer culturas para cobertura do solo (cover crops), em particular nas culturas permanentes como a vinha (fig. 2).
2.2. Azoto e óxido nitroso (N2O) e gás metano (CH4)
Estes GEE têm um efeito de estufa muito superior ao do dióxido de carbono. E o óxido nitroso foi o que teve o maior crescimento na última década, em parte devido ao excesso de adubos químicos azotados na agricultura.
O adubo químico azotado (muito dele importado da Rússia) deve ser total ou parcialmente substituído por azoto fixado biologicamente pelas plantas leguminosas em simbiose com a bactéria rizóbio, na prática de adubação ou estrumação verde (green manure), atualmente designada também por culturas de cobertura (cover crops).
A título de exemplo, um hectare de faveta ou de fava-cavalinha, produz 150 a 200 Kg de azoto até ao final da sua floração, podendo a planta ser usada como adubo verde (em substituição do adubo químico ou do orgânico azotado), como alimento concentrado para o gado (em vez da soja OGM importada), ou como alimento para consumo humano direto (reduzindo o consumo de proteína animal), sem precisar de um único quilograma de adubo azotado!
Quanto ao metano, proveniente principalmente da produção animal (metano produzido pelos ruminantes no processo digestivo, e também metano das lagoas de evaporação dos efluentes de suiniculturas), há que fazer uma pecuária mais extensiva e reduzir quer o encabeçamento animal quer a dependência de alimentos concentrados (rações) fabricados na sua grande maioria com milho e soja importados.
3.Proteger o ambiente e preservar a biodiversidade
O primeiro ambiente a proteger com a sua múltipla biodiversidade é o ecossistema solo. Para além dos aspetos já referidos para aumentar a matéria orgânica, há que evitar a erosão e a contaminação química provocada por adubos e pesticidas.
O segundo ambiente a proteger é o aquático. Ao nível dos aquíferos, que são as reservas de água mais estáveis e as de último recurso, é inaceitável que Portugal tenha há mais de 20 anos 9 zonas vulneráveis de nitratos nas zonas de agricultura convencional mais intensiva em fatores de produção externos, com a água imprópria para consumo devido ao excessivo uso de adubos químicos azotados de libertação rápida e muito solúveis na água, os adubos mais usados na agricultura nacional, a maior parte de importação.
Os adubos azotados resultantes da síntese química do amoníaco consomem muita energia no seu fabrico (equivalente a 2,4 litros de petróleo) e por isso aumentam a dependência energética (do agricultor e do país) e a poluição do solo (acidez e salinidade) e da água (nitratos).
Outro aspeto da biodiversidade muito afetada pelas más práticas agrícola é a dos insetos e outros organismos auxiliares na limitação natural das pragas e na polinização das culturas. Estes organismos são afetados principalmente pelos pesticidas não seletivos, que começaram a ser retirados de toda a agricultura europeia. Quando os auxiliares são protegidos muitas das pragas são limitadas naturalmente sem precisarem de inseticidas.
Outra biodiversidade a preservar é a genética, no que diz respeito às variedades tradicionais (caso do trigo Barbela, um trigo de palha alta que dispensa herbicidas, e com baixo teor de glúten), ou às raças autóctones.
4.Assegurar um retorno económico justo na cadeia alimentar
É preciso encurtar a distância entre produtor e consumidor (circuitos de comercialização mais curtos) e reduzir as margens comerciais da distribuição.
O consumidor em Portugal já paga o suficiente pelos alimentos. O agricultor é que recebe pouco, ficando com a menor parte e isto precisa ser alterado com urgência.
O aumento de modos de produção que apostem na qualidade, como as denominações de origem protegidas (DOP, IGP e ETG) e a agricultura biológica, é também uma forma de valorizar a produção agrícola no produtor.
5.Aumentar a agricultura biológica
O aumento da área agrícola de agricultura biológica na UE para 25% até 2030 parece ser o objetivo mais polémico em Portugal. Mas a Comissão Europeia não tem grandes dúvidas de que é urgente este substancial aumento, quer para responder aos desafios ambientais e climáticos, quer para responder à procura que cresce na UE mais de 10% ao ano.
A agricultura biológica também já demonstrou na União Europeia e no Mundo que pode produzir bem sem recurso a adubos e pesticidas químicos de síntese, com uma redução média da produtividade (a nível mundial) de 7 a 8% quando as boas práticas agrícolas de rotação de culturas e da biodiversidade agrícola são aplicadas. Essa redução é compensada no agricultor com um acréscimo do preço na produção muito superior, o que aumenta a sustentabilidade económica (para além da ambiental e social) da agricultura.
Para o consumidor o acréscimo no preço pode ser compensado por alterações da dieta (por exemplo a substituição parcial ou total da carne por grãos de proteaginosas, como grão-de-bico, feijão, feijão-frade, lentilhas, chícharo, tremoço), o que é melhor também para que a agricultura fique menos dependente de adubos, já que se trata de culturas leguminosas fixadoras de azoto.
A produção animal biológica é necessariamente extensiva (abaixo de 2 cabeças normais, equivalente a duas vacas adultas), de menor impacte ambiental e com muito menor uso de antibióticos, com um máximo de 3 tratamento por ano e apenas de forma curativa, ao contrário do que acontece com a produção mais intensiva (frango, peru, coelho) com tratamento antibiótico de forma continuada e para acelerar o crescimento.
Objetivos quantificados da estratégia europeia (até 2030):
- Reduzir em 50% o uso e o risco de pesticidas químicos (de síntese);
- Reduzir em 50% o uso dos pesticidas mais tóxicos;
- Reduzir a lixiviação (perdas) dos nutrientes dos adubos em pelo menos 50%, assegurando também a manutenção da fertilidade do solo;
- Reduzir o uso de adubos químicos em pelo menos 20%;
- Reduzir as vendas de antibióticos para a produção animal e para a produção aquícola;
- Aumentar a área de agricultura biológica para 25% de toda a área agrícola da UE.
Uma agricultura que trabalhe com a Natureza e não contra ela, é indispensável para resolver a emergência climática, para regenerar o solo e para melhor prevenir e resistir às doenças (Ferreira et al, 2021).
Referências bibliográficas
Badgley C, Moghtader J, Quintero E, Zakem E, Chappell MJ, Avilés-Vázquez K, Samulon A, Perfecto I. 2007. Organic agriculture and the global food supply. Renewable Agriculture and Food Systems, 22: 86-108, Cambridge University Press
EC, 2020. A Farm to Fork Strategy for a fair, healthy and environmentally-friendly food system. Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee of the Regions. Brussels, 20.05.2020 COM (2020) 381 final
Ferreira J. (Coord.), 2021. Boas práticas agrícolas para o solo e para o clima. Coleção “Agricultura Biológica”. Quântica Editora – Agrobook, Porto, 209 pp.
Ponisio LC, M’Gonigle LK, Mace KC, Palomino J, de Valpine, P, Kremen C. 2015. Diversification practices reduce organic to conventional yield gap. Proc. R. Soc. B 282: 20141396 / http://dx.doi.org/10.1098/rspb.2014.1396
WMO. 2019. Provisional Statement on the State of the Global Climate in 2019. World Meteorologiacal Organization, 34 pp.
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