A mentira monta na garupa da dúvida

A mentira monta na garupa da dúvida

por Irina Castro

As suspeitas de que grandes corporações da agro-indústria, tais como a Bayer Cropscience[1], exercem influência sobre a produção científica, com o intuito de gerar dúvida sobre as críticas que demonstram os efeitos nefastos dos seus produtos, não são uma questão recente. Essas suspeitas têm sido respaldadas não somente pela análise histórica de outras indústrias, como a indústria tabaqueira, que manipularam o conhecimento científico em benefício próprio[2], mas também por diversos relatos que continuamente expõem as táticas enganosas e as perseguições orquestradas a cientistas, jornalistas e ativistas. Por exemplo, ao examinarmos a história, notamos que cientistas como Rachel Carson, Melvin Dwaine, Robert L. Rudd, Árpád Pusztai, Ignacio Chapela, Angelika Hilbeck, e muitos outros, se tornaram alvo de supressão académica, organizada por atores empresariais deste segmento do mercado.[3]

Atualmente, muitas dessas táticas estão documentadas e têm sido objeto de análises tanto no âmbito académico como fora dele[4]. Essas investigações visam expor os efeitos prejudiciais da manipulação da ciência nos processos regulatórios e alertam para a crescente influência que essa manipulação exerce sobre a própria literatura científica, configurando-se como um fenómeno que me arrisco a designar como “sequestro da ciência.”[5]

Não é de surpreender, portanto, que as suspeitas em relação às empresas da agro-indústria tenham sido confirmadas, especialmente a partir de 2017. Casos emblemáticos, como o conhecido “Monsanto Papers”, propiciaram a realização de análises sistemáticas sobre o modo como as corporações manipulam e difamam cientistas, com o intuito de salvaguardar os seus interesses comerciais.[6]

Uma das análises mais recentes está presente no relatório intitulado “Merchants of Poison: How Monsanto Sold the World on a Toxic Pesticide” (2022)[7], ainda não traduzido para português, que resumirei aqui. Este relatório foi elaborado com base nas investigações de vários cientistas e jornalistas que se dedicaram a examinar a conduta da Monsanto e outras empresas do sector, bem como na análise de documentos tornados públicos através de ações judiciais, especialmente relacionados com o herbicida Roundup. Stacy Malkan, co-fundadora do U.S. Right to Know, Kendra Klein, cientista sénior da Friends of the Earth, e Anna Lappé, consultora independente, expõem o modo como a Monsanto historicamente manipulou e atacou cientistas para garantir os seus próprios interesses. Ao longo de décadas, a indústria dos pesticidas utilizou estratégias para manipular a ciência e a informação científica que esteve, e está, na base de inúmeras decisões políticas. Por exemplo, está hoje documentado o uso de táticas como financiar e conduzir pesquisas com o objetivo de desviar a atenção dos danos causados pelos seus produtos, ou até mesmo suprimir publicações de estudos científicos que consideraram desfavoráveis aos seus negócios. Outras táticas também documentadas passam ainda por campanhas públicas que procuram levantar dúvidas sobre os resultados de estudos independentes e sobre propostas regulatórias alternativas que estes consideram ameaçar os seus interesses. Todas as táticas têm como objetivo gerar um ambiente de dúvida sobre os impactos dos pesticidas e com isto lhes ser possível negar qualquer efeito negativo dos mesmos.

O relatório aponta assim para as múltiplas estratégias utilizadas, principalmente pela empresa Monsanto, no sentido de controlar a informação, o conhecimento e a decisão política. De maneira similar, a recente análise conduzida por investigadores do Tobacco Control Research Group, da Universidade de Bath, no Reino Unido, embora não mencione explicitamente as empresas envolvidas, conclui que as interferências de empresas privadas, de oito sectores de atividade económica, na ciência são históricas, sistemáticas e transversais a vários setores industriais.[8]

A persistente inquietação da comunidade científica diante da influência dos interesses comerciais privados impulsionou o surgimento de diversas organizações independentes de cientistas, como a Union of Concerned Scientists (USA, 1969), a European Network of Scientists for Social and Environmental Responsibility (EU, 2009), e a Unión de Cientificos Comprometidos com la Sociedad y la Naturaleza de America Latina (2014), demonstrando a importância de grupos de cientistas críticos organizados aos níveis internacional e nacional.[9]

No entanto, como mencionado anteriormente, muitos e muitas cientistas que, consciente ou inconscientemente, se opuseram às conclusões da indústria, foram vítimas de supressão académica[10]. Embora a prática de suprimir vozes discordantes não seja uma novidade, é motivo de alarme quando observamos que certos interesses comerciais privados orquestram campanhas de difamação, pressionam as universidades para que demitam cientistas e se envolvem em ações de perseguição contra ativistas e jornalistas.[11] A situação agrava-se ainda mais quando alguns cientistas, como Larissa Bombardi, enfrentam ameaças à sua integridade física, bem como às suas famílias e vidas.[12] De acordo com o sociólogo Brian Martin, da Universidade de Wollongong, Austrália, tais situações atuam como um mecanismo coercivo para os demais cientistas.[13] Segundo as suas análises, a auto-supressão é a forma mais proeminente de supressão científica em vigor, como resultado da influência exercida por essas empresas privadas sobre o financiamento e os quadros diretivos de uma grande parte das universidades em todo o mundo.

Em conclusão, a influência das grandes corporações da agro-indústria sobre a produção científica tem sido uma preocupação crescente e bem fundamentada ao longo do tempo. As suspeitas, reforçadas por relatos e investigações documentadas, apontam para táticas manipuladoras e perseguições orquestradas contra cientistas, jornalistas e ativistas, com o fim de salvaguardar interesses comerciais. Urge resguardar a integridade da ciência e garantir um ambiente de pesquisa imparcial e transparente, para enfrentar os desafios que ameaçam o avanço do conhecimento.

As mentiras da indústria montam-se assim na garupa da dúvida que se tornou o seu negócio.

 

Irina Castro

Pós-doutoranda Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

[1] À Bayer CropScience que hoje inclui a Monsanto juntam-se as grandes empresas ChemChina, que inclui a Syngenta e Adama, a Corteva Agrisciene antigamente designada como Dow-Dupont e a BASF.

[2] Ver: Conway EM, Oreskes N (2012) Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. Bloomsbury Paperbacks; Michaels, D. (2008). Doubt is their product: how industry’s assault on science threatens your health. Oxford University Press; Michaels, D. (2020). The triumph of doubt: dark money and the science of deception. Oxford University Press.

[3] Ver: Martin, B. (1996) Critics of pesticides: whistleblowing or suppression of dissent?. Philosophy

and Social Action. 22 (3), 33-55; Delborne, Jason A. (2016). Suppression and Dissent in Science in Bretag, Tracey (Ed.) Handbook of Academic Integrity. Springer (pp. 943-958), Singapore: Springer; Hakim, D. (2016) Scientists Loved and Loathed by an Agrochemical Giant. The New York Times. Consultado online a 02, 2018, em: https://www.nytimes.com/2016/12/31/business/scientists-loved-and-loathed-bysyngenta-

an-agrochemical-giant.html; Quarantiello, A. (2004) Rachel Carson. A Biography. London: Greenwood Press. Castro, I., & Serra, R. (2020) A dissidência científica no feminino: contributos para a proposta tecnocientífica do ecossocialismo. e-cadernos CES, (34).

[4] Ver: Legg, T., Hatchard, J., & Gilmore, A. B. (2021). The science for profit model—how and why corporations influence science and the use of science in policy and practice. PLoS One, 16(6), e0253272.

[5] Ver: Sismondo, S. (2008) How pharmaceutical industry funding affects trial outcomes: causal structures and responses. Social science & medicine, 66(9), 1909-1914; Mirowski, P. & Van Horn, R. (2005) The contract research organisation and the commercialisation of scientific research. Social studies of science, 35(4), 503-548; Sismondo, S. (2009). Ghosts in the Machine. Social Studies of Science, 39(2), 171–198.

[6] Ver: Wisner Baum (2023). Monsanto Papers- Secret Documents. Consultado online a 16-07-2023 em: https://www.wisnerbaum.com/toxic-tort-law/monsanto-roundup-lawsuit/monsanto-papers/; McHenry, L. B. (2018). The Monsanto papers: poisoning the scientific well. International Journal of Risk & Safety in Medicine, Vol 29 (3-4), 193-205. Matheson , A. (2023) The “Monsanto papers” and the nature of ghostwriting and related practices in contemporary peer review scientific literature, Accountability in Research; Gillam, C. (2021). The Monsanto Papers: Deadly Secrets, Corporate Corruption, and One Man’s Pesquisa for Justice. Island Press.

[7] Malkan, S., Klein, K., & Lappé, A. (2022) Merchants of Poison. How Monsanto Sold the World on Toxic Pesticide. A case study in disinformation, corrupted science, and manufactured doubt about glyphosate. Dezembro. Disponível em: https://foe.org/resources/merchants-of-poison/

[8] Ver: Legg, T., Hatchard, J., & Gilmore, A. B. (2021). The science for profit model—how and why corporations influence science and the use of science in policy and practice. PLoS One, 16(6), e0253272.

[9] Além destas organizações que trabalham em redes internacionais há que ter em conta organizações nacionais como a Critical Scientists Switzerland, Scientists for Global Responsibility (UK), Sciences Critiques (FR), CRIIGEN (FR), Vereinigung Deutscher Wissenschaftler e. V., VDW (DE). Além de grupos organizados de cientistas estes também se envolvem em movimento com produtores, ativistas, e outros actores sociais como é o caso do ETC Group, Science Citoyennes, GeneWatch, GMWatch, etc.

[10] Delborne, J. A. (2005) Pathways of Scientific Dissent in Agricultural Biotechnology. PhD dissertation in Environmental Science, Policy and Management. University of California, Berkeley [fall 2005]; Delborne, J. A. (2008) Transgenes and transgressions: scientific dissent as heterogeneous practice. Social Studies of Science, 38(4), 509-541.

[11] Ver: Revealed: how Monsanto’s ‘intelligence center’ targeted journalists and activists (2019) https://www.theguardian.com/business/2019/aug/07/monsanto-fusion-center-journalists-roundup-neil-young

[12] Ver: Larissa Bombardi: “Não vou colocar minha cabeça, nem a dos meus filhos a prêmio” (2021) https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2021/05/larissa-bombardi-nao-vou-colocar-minha-cabeca-nem-dos-meus-filhos-premio.html

[13] Ver: Martin, B. (1992) Intellectual suppression: why environmental scientists are afraid to speak out. Habitat Australia, 20(3), 11-14.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *