Às três, será de vez?
Diz-se que há uma primeira vez para tudo. No caso dos organismos geneticamente modificados (OGM) a inocência terminou a 16 de Outubro de 1999 com a publicação, na prestigiada revista científica Lancet, do artigo de Ewen e Pusztai intitulado «Effect of diets containing genetically modified potatoes expressing Galanthus nivalis lectin on rat small intestine». Nele se relata a forma brilhante como se detectaram efeitos – inesperados e negativos – que as batatas transgénicas acarretaram aos animais que as comeram… mas não por causa da proteína transgénica presente no tubérculo. Ou seja, o processo de transgénese (independentemente da proteína a introduzir) pode acarretar alterações metabólicas específicas na planta, com consequências visíveis para a saúde, para além do que a proteína transgénica também possa induzir.
Este trabalho deveria ter levado, de imediato, a uma reavalição de todos os OGM em circulação. Isto porque, com base num dogma que só a fé pode explicar, os estudos de segurança alimentar assumem a seguinte equação como inquestionável: OGM = planta original + proteína transgénica. Por isso os ensaios de toxicidade de OGM são feitos, não com o OGM, não com a proteína extraída do OGM, mas sim com a proteína isolada de um microrganismo onde foi clonada. Mas, como Ewen e Pusztai mostraram, tal equação não podia estar mais longe da verdade. O todo é maior que a soma das partes e o produto a estudar tem de ser visto como alterado para além da mera adição proteica.
Mas não houve qualquer reavaliação – nem sequer um sobressalto por parte das autoridades competentes. Falta de tempo? de atenção? de cientistas para explicar?
Também se diz que à segunda só cai quem quer. Para os OGM a segunda veio pela mão de Manuela Malatesta. Esta cientista e a sua equipa da Universidade de Urbino publicaram em 2002 na revista Cell Structure and Function o artigo «Ultrastructural Morphometrical and Immunocytochemical Analyses of Hepatocyte Nuclei from Mice Fed on Genetically Modified Soybean» onde se demonstrava que o OGM mais cultivado do mundo – a soja transgénica 40-30-2 da Monsanto, que ocupa 58,6 milhões de hectares (57% da área global dedicada a transgénicos) – tinha um impacto profundo (embora reversível) no núcleo de hepatócitos. As mudanças incluiam alteração da forma do núcleo e dos nucléolos, maior número de poros na membrana nuclear e concentrações alteradas de numerosas proteínas, num quadro sugestivo de aceleração metabólica.
O dogma da Monsanto, de que os transgénicos são tal qual os alimentos convencionais de que derivam, pelo menos do ponto de vista nutricional, cai assim por terra. Além disso o fígado é um dos principais orgãos de depuração do organismo, e qualquer alteração metabólica representa motivo de preocupação a vários níveis. Mas os Estados-Membros da União Europeia, que no âmbito do artigo 20º da Directiva 2001/18 são obrigados a ter em conta novas informações relativas a riscos para a saúde humana por forma a que sejam tomadas medidas comunitárias adequadas, que podem chegar à proibição do OGM…
… não foram por aí. Ninguém foi. Falta de quê, desta vez? de vontade? de força?
Às três, como todos sabem, é de regra ser de vez. E ei-la que chegou agora mesmo: o artigo acabou de ser publicado online na revista Archives of Environmental Contamination and Toxicology e tem por título «New Analysis of a Rat Feeding Study with a Genetically Modified Maize Reveals Signs of Hepatorenal Toxicity». Os estragos, neste caso, referem-se ao milho MON 863, aprovado para consumo na União Europeia desde Janeiro de 2006. E os dados foram obtidos… pela própria Monsanto. Neste artigo é feito o tratamento estatístico dos números que a empresa se viu obrigada, após tribunal, a disponibilizar.
Os resultados? Toxicidade hepatorrenal, com aumento de até 40% dos triglicerídeos do sangue em ratos fêmea e uma redução de até 35% do fósforo e sódio na urina de ratos macho. Também se detectaram alterações no peso dos animais: os machos aumentaram um pouco menos de peso que os animais de controle, e as fêmeas aumentaram um pouco mais. Estes valores são estatisticamente significativos e estão directamente relacionados com o consumo do milho transgénico. O estudo durou apenas 90 dias e não existem dados sobre efeitos de longo prazo.
A questão agora é: vai acontecer alguma coisa ou a ciência afinal não serve para nada? Os Estados-Membros tencionarão cumprir finalmente o seu papel? Ainda é cedo para dizer, e a esperança só morre no fim. Mas a minha perspectiva muito pessoal é de que a saúde das pessoas não é a primeira prioridade, para o nosso e restantes governos. Talvez precisem de um empurrão.
Porto, 19 de Março de 2007
Margarida Silva
Bióloga
Vice-presidente da Quercus
Coordenadora da Plataforma Transgénicos Fora
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