Carta aberta sobre a regulamentação das novas técnicas de edição genética

Carta aberta sobre a regulamentação das novas técnicas de edição genética

CARTA ABERTA EM PDF

 

Bruxelas, Lisboa, 30 de Março de 2021

Carta aberta sobre a regulamentação das novas técnicas de edição genética 

Exmo. Sr. Vice-Presidente da Comissão Europeia,  

Cc: Exmo. Sr. Primeiro Ministro de Portugal 

Exma. Sra. Ministra da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural 

Exmo. Sr. Ministro do Ambiente e da Transição Energética 

Exma. Sra. Comissária Europeia da Coesão e Reformas 

Exmos./ Exmas. Srs. e Sras. deputados e deputadas portugueses/portuguesas ao Parlamento  Europeu 

Exmos. / Exmas. Srs. e Sras. representantes dos grupos parlamentares da Assembleia da  República  

Enquanto empresas e organizações da sociedade civil, estamos profundamente alarmados  pelas tentativas de desregulamentar a nova geração de culturas e animais geneticamente  modificados (GM) através de novas técnicas/métodos de mutagénese [i], como a  CRISPR/Cas. 

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) deliberou que a nova geração de organismos  geneticamente modificados deve ser regulada pelas leis aplicáveis aos OGM já existentes na  UE. [ii] A sua exclusão da diretiva dos OGM “comprometeria o objetivo de proteção contido  na diretiva e desrespeitaria o princípio da precaução que esta procura implementar”, de  acordo com o Tribunal (ponto 53 do Acórdão). 

A indústria da biotecnologia agrícola alega que estes organismos GM contêm apenas  pequenas alterações de ADN que poderiam acontecer naturalmente e, por conseguinte, não  representam quaisquer riscos. Contudo, a bibliografia científica demonstra que as novas  técnicas de modificação genética permitem operar modificações significativas, e que estas  modificações podem ser bastante diferentes das que ocorrem naturalmente. [iii] Isto reflete-se  também no facto de todas as técnicas/métodos de mutagénese se encontrarem patenteadas,  pelo que, supostamente, diferirão dos resultados das práticas de cruzamento reprodutivo  tradicionais. Adicionalmente, as novas técnicas de modificação genética podem causar uma  série de alterações genéticas indesejadas, podendo estas resultar na produção de novas toxinas  ou alérgenos, ou na transferência de genes que conferem resistência a antibióticos. [iv] Mas mesmo as modificações intencionais podem resultar em características com implicações preocupantes na segurança alimentar, no ambiente e no bem-estar animal. [v] 

O uso de novas técnicas/métodos de mutagénese na reprodução de animais para pecuária  também levanta sérias preocupações do ponto de vista ético e do bem-estar animal. Entre  outras razões, pelo elevado número de animais necessários na fase de teste para se conseguir  uma prole viável e pela imprevisibilidade e instabilidade das edições genéticas nos animais. [vi] A modificação genética de animais, plantas ou microrganismos através das novas  técnicas/métodos de mutagénese pode, portanto, constituir um perigo para os consumidores,  para o bem-estar animal e para o ambiente. 

Na sua capacidade de Vice-Presidente da Comissão, Vª Ex.ª estará, em breve, envolvido  em três decisões relevantes para este assunto. Apelamos fortemente a que intervenha no  sentido de garantir que todos os organismos derivados de técnicas/métodos de  mutagénese continuem a ser regulados de acordo com os padrões da UE para os OGM,  que os produtos resultantes não entrem na cadeia alimentar de forma ilegal e que a UE  se posicione em oposição clara à libertação no ambiente de organismos obtidos através  de indução genética (gene drive). 

(1) Decisão da Comissão quanto à regulamentação de novas técnicas/métodos de  mutagénese/ edição genética 

Espera-se que a Comissão apresente a sua perspetiva quanto à futura regulamentação das  novas técnicas/métodos de edição genética até ao final de Abril, baseada num estudo interno  solicitado pelo Conselho de Ministros. [vii] A Comissária responsável, Stella Kyriakides,  parece considerar a tecnologia GM como uma via para aumentar a sustentabilidade da  agricultura. Estamos preocupados com uma eventual proposta para a exclusão de certas  técnicas/métodos de mutagénese do âmbito das leis OGM da UE, como proposto pela  indústria de biotecnologia agrícola. 

Não é realista esperar que novas técnicas/métodos de mutagénese contribuam para reduzir os  impactes negativos da agricultura no ambiente e no clima. As promessas de criação de  culturas GM resistentes à seca e de redução da necessidade do uso de pesticidas são tão  antigas como a própria tecnologia GM [viii]. Estas promessas falharam, desde logo porque a  estabilidade da produção alimentar num clima instável requer, antes de mais, boas práticas  agrícolas e sementes localmente adaptadas; de que existem já muitos exemplos de sucesso. [ix] Adicionalmente, todas as técnicas/métodos de mutagénese estão patenteadas. As patentes  sobre as sementes têm consequências económicas negativas para o sector da agricultura,  incluindo a monopolização e concentração do mercado das sementes.

  • Apelamos a que Vª Ex.ª se oponha ao enfraquecimento da regulamentação dos  OGM na UE, assegurando a aplicação integral do Acórdão de 25 de Julho de 2018  emitida pelo TJUE, em linha com o princípio da precaução. Para o conseguir, a  Comissão deve apoiar os esforços dos estados-membros na prevenção da  contaminação ilegal das importações com culturas GM não aprovadas, resultantes das  novas técnicas/métodos de mutagénese. [x] 

(2) Regressão do Reino Unido na adoção dos padrões da UE relativamente aos OGM 

O governo britânico tem em curso uma consulta pública sobre a inclusão ou exclusão das  novas técnicas de melhoramento reprodutivo, incluindo a engenharia genética, na sua  definição de Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Se o Reino Unido alterar a  definição em vigor, os seus padrões de saúde pública e ambiente ficarão enfraquecidos face  aos da EU. [xi] 

  • Apelamos a que Vª Ex.ª lidere uma resposta forte da Comissão face às possíveis  alterações na regulamentação no Reino Unido, que representaria um claro  rompimento com o princípio de não-regressão consagrado no Acordo Comercial e de  Cooperação entre a UE e o Reino Unido. Solicitamos que peça ao governo britânico  que desista destas suas intenções, ou que encare as respetivas consequências para o  comércio de bens agrícolas entre a UE e o Reino Unido. 

(3) A posição da UE relativamente à regulamentação global dos organismos obtidos  através de indução genética (gene drive

Uma aplicação particularmente preocupante das novas técnicas/métodos de edição genética é  a indução genética (gene drive). Esta tecnologia permite editar geneticamente, dizimar ou  erradicar populações inteiras de organismos selvagens, em particular insetos. [xii] Em tempos  de crise ecológica, com um milhão de espécies ameaçadas, não nos podemos dar ao luxo de  experimentar uma tecnologia que já foi adequadamente designada como “extinção por  encomenda”. [xiii] Uma primeira sondagem representativa entre cidadãos de oito países da  UE mostra uma elevada oposição e um apoio muito escasso à intervenção no ambiente por  meio desta tecnologia. [xiv] 

A Comissão Europeia declarou pretender que a UE seja líder na defesa da Natureza. A  Comissão representará a UE nas próximas negociações da Convenção da ONU sobre  Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena.

  • Solicitamos a Vª Ex.ª que apoie o estabelecimento de uma moratória global sobre  a libertação de organismos obtidos através de indução genética no ambiente, com  base no princípio da precaução ao nível internacional, tal como recomendado pelo  Parlamento Europeu. [xv] 

Exmo. Sr. Vice-Presidente da Comissão, os resultados destes três processos de definição  de políticas determinarão a segurança do nosso abastecimento alimentar e o futuro da  salubridade do nosso ambiente e clima. Apelamos a que assegure a total implementação  do Acórdão do TJUE. Contamos com Vª Exª para defender o princípio da precaução,  manter um elevado nível de protecção e preservar o direito dos agricultores e dos  consumidores a escolher o que plantam e o que consomem. Isto exige que todas as novas  técnicas/métodos de mutagénese sejam regulamentadas, que os seus riscos sejam  seriamente analisados e que haja uma rotulagem rigorosa. 

Subscreveram esta carta, juntamente com 148 organizações da sociedade civil do espaço  europeu, as seguintes organizações portuguesas: 

  • AEPGA – Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino  
  • Campo Aberto 
  • Círculos de Sementes  
  • CNA – Confederação Nacional da Agricultura 
  • GAIA – Grupo de Acção e Intervenção Ambiental 
  • Movimento Cívico Ar Puro  
  • NDMALO-GE  
  • Palombar – Associação de Conservação da Natureza e do Património Rural  Parents for Future Portugal  
  • Plataforma Transgénicos Fora  
  • Rede para o Decrescimento  
  • Térrea – Associação para a Cultura, o Desenvolvimento Sustentável e a Cidadania  TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo  
  • Wakeseed  
  • ZERO, Associação Sistema Terrestre Sustentável 

[i] Segundo o Conselho Europeu (https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019D1904&from=EN) “Por acórdão no processo C-528/16 (2), o Tribunal de  Justiça, depois de ter considerado os objetivos gerais da Diretiva 2001/18/CE, determinou que as novas técnicas  de mutagénese são abrangidas pelo âmbito de aplicação dessa diretiva e estão sujeitas às obrigações nela  estabelecidas” (ponto 51 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, 25 de Julho de 2018, Caseo C  528/16, 

 

https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=A7204E29935CF9E650CE30B419699C6C?text =&docid=204387&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=4687738). 

[ii] O TJUE argumenta que “os riscos associados à utilização dessas novas técnicas/métodos de mutagénese podem  revelarse semelhantes aos que resultam da produção e da difusão de OGM por transgénese. Assim, decorre  dos elementos de que dispõe o Tribunal de Justiça, por um lado, que a modificação direta do material genético  de um organismo por mutagénese permite obter os mesmos efeitos que a introdução de um gene estranho no  referido organismo e, por outro, que o desenvolvimento dessas novas técnicas/métodos permite produzir  variedades geneticamente modificadas a um ritmo e em quantidades não comparáveis com as que resultam da  aplicação de métodos tradicionais de mutagénese aleatória (ponto 48 do Acórdão do TJUE citado na nota [i]) 

[iii] Eckerstorfer MF et al (2019). An EU perspective on biosafety considerations for plants developed by genome  editing and other new genetic modification techniques (nGMs). https://doi.org/10.3389/fbioe.2019.00031 Kawall, K., Cotter, J. & Then, C. Broadening the GMO risk assessment in the EU for genome editing  technologies in agriculture. Environ Sci Eur 32, 106 (2020). https://doi.org/10.1186/s12302-020-00361-2 

[iv] Sansbury, B.M., Hewes, A.M. & Kmiec, E.B. Understanding the diversity of genetic outcomes from CRISPR Cas generated homology-directed repair. Commun Biol 2, 458 (2019) https://doi.org/10.1038/s42003-019-0705- y 

Norris, A.L., Lee, S.S., Greenlees, K.J. et al. Template plasmid integration in germline genome-edited cattle. Nat  Biotechnol 38, 163–164 (2020). https://doi.org/10.1038/s41587-019-0394-6 

Rezza, A., Jacquet, C., Le Pillouer, A. et al. Unexpected genomic rearrangements at targeted loci associated with  CRISPR/Cas9-mediated knock-in. Sci Rep 9, 3486 (2019) https://doi.org/10.1038/s41598-019-40181-w, Robinson, Cl. Antoniou, M. & Fagan J. GMO myths and truths. Updated with new information on ‘new GM’  techniques, Earth Open Source, Fairfield, (2018) (4th ed) 

Adikusuma, F., Piltz, S., Corbett, M.A. et al. Large deletions induced by Cas9 cleavage. Nature 560, E8–E9  (2018). https://doi.org/10.1038/s41586-018-0380-z 

Rayner, E. et al. CRISPR-Cas9 Causes Chromosomal Instability and Rearrangements in Cancer Cell Lines,  Detectable by Cytogenetic Methods The CRISPR Journal. Dec 2019. pp. 406-416. 

http://doi.org/10.1089/crispr.2019.0006 

[v] Eckerstorfer MF et al (2019). An EU perspective on biosafety considerations for plants developed by genome  editing and other new genetic modification techniques (nGMs) https://doi.org/10.3389/fbioe.2019.00031 

[vi] Ormandy EH, Dale J, Griffin G. Genetic engineering of animals: ethical issues, including welfare concerns. Can  Vet J. 2011;52(5):544-550. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3078015/ 

[vii] Decisão do Conselho (EU) 2019/1904 sobre o estudo das novas técnicas genéticas, https://eur lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019D1904&from=EN 

Âmbito do estudo da Comissão: https://ec.europa.eu/food/plant/gmo/modern_biotech/new-genomic techniques_en 

[viii] Greenpeace International (2015). Twenty Years of Failure. Why GM crops have failed to deliver on their  promises: https://www.greenpeace.org/static/planet4-international-stateless/2015/11/7cc5259f-twenty-years-of failure.pdf

[ix] Chable, V. et al. A. Embedding Cultivated Diversity in Society for Agro-Ecological Transition. Sustainability 2020, 12, 784. https://doi.org/10.3390/su12030784 

[x] Ribarits, A. et al. Detection Methods Fit-for-Purpose in Enforcement Control of Genetically Modified Plants  Produced with Novel Genomic Techniques (NGTs). Agronomy 2021, 11, 61.  

https://doi.org/10.3390/agronomy11010061 

https://www.detect-gmo.org/ 

[xi] https://www.gov.uk/government/news/gene-editing-creates-potential-to-protect-the-nations-environment pollinators-and-wildlife https://consult.defra.gov.uk/agri-food-chain-directorate/the-regulation-of-genetic technologies/ 

[xii] Simon, S., Otto, M. and Engelhard, M. Synthetic gene drive: between continuity and novelty EMBO Rep  (2018) 19:e45760 https://doi.org/10.15252/embr.201845760 

[xiii] https://www.economist.com/briefing/2018/11/08/the-promise-and-peril-of-gene-drives 

[xiv] https://www.stop-genedrives.eu/en/survey-eu-citizens-reject-genetic-engineering-of-wild-species-with-gene drives/ 

[xv] Resolução do Parlamento Europeu de 16 de Janeiro de 2020 aquando do 15º encontro das partes (COP15) para  a Convenção sobre a Diversidade Biológica (2019/2824(RSP))  

https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2020-0015_EN.html (ponto 13)

 

 

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