QUE FRAUDE NOS BIOLÓGICOS?

QUE FRAUDE NOS BIOLÓGICOS?

O artigo da Visão de 29.6.2017 aponta a presença de resíduos de pesticidas de síntese química em alimentos de agricultura biológica, onde estão proibidos. Foram detetados pesticidas em 21 dos 113 alimentos analisados (18,5% das amostras). Apenas um alimento (0,9%) tinha resíduos acima do limite máximo (LMR) legal para a produção convencional (caso do glifosato em couve-coração). Em cinco outros é referido que os teores estão acima dos níveis indicativos de possível fraude para a produção biológica (valores estes que são menores que o LMR).

Assim, os dados apontam para que, nas 113 análises, sete sejam de provável fraude (6,2%). Incluem-se as bagas Goji chinesas, que contêm 8 pesticidas diferentes – o que é inaceitável. Para os restantes 14 alimentos com pesticidas, os baixos teores apontam para contaminação adventícia ou importação de países onde as regras para o bio não são iguais. Ou seja, razões não fraudulentas.

O caso do glifosato é o mais estranho, pois este herbicida mata as couves em que for aplicado. A amostra devia ser testada de novo (para despistar erros) em laboratório com análises acreditadas (o Labiagro, escolhido pela Visão, indicava em documentação recente que as suas análises ao glifosato não estavam acreditadas).

Ao contrário do que se pensa, as normas comunitárias da agricultura biológica não garantem a ausência de resíduos de pesticidas de síntese química. Para tolerância zero todos os lotes de todos os produtos de todos os operadores teriam de ser testados – o que seria incomportável. Em Portugal o Ministério da Agricultura estabeleceu que as análises abranjam no mínimo um produto em 5% dos produtores. Assim, mesmo que todos os procedimentos sejam seguidos, é garantido que vão chegar ao consumidor alimentos biológicos com alguns resíduos não permitidos – sem que haja necessariamente fraude. Só nos lotes em que há análises e esses resíduos são detetados é que há desclassificação dos produtos. Se a concentração ultrapassar os valores limite para contaminação adventícia então presume-se fraude e o produtor é penalizado.

Os resultados obtidos pela Visão são graves? Nem por isso, de acordo com os dados oficiais mais recentes sobre pesticidas em toda a União Europeia:
– alimentos com pelo menos um pesticida: 47% no convencional e 14% no biológico (19% no estudo da Visão);
– alimentos com resíduos acima do LMR: 2,9% no convencional e 0,7% no biológico (0,9% no estudo da Visão);
– alimentos biológicos com resíduos que indiciam aplicação fraudulenta: 8,3% (6,2% no estudo da Visão).

A terceira comparação mostra que no que toca a fraudes a Visão encontrou uma situação mais favorável ao biológico do que existe na média europeia. Isto nega muito da suposta gravidade revelada no artigo e permite concluir que a “fraude” não terá a dimensão que lhe é atribuída. Quanto à diferença de 5% na primeira comparação ela pode vir, por exemplo, de o jornalista ter comprados vários alimentos bio de uma só marca (qualquer falha nesse produtor vai inflacionar a média). Além disso é voz corrente que as lojas da especialidade são mais cuidadosas com a origem dos produtos. Qual a percentagem de alimentos contaminados nos hipermercados e qual nas lojas que só vendem biológico? Tudo isto pode mudar os números.

Em qualquer caso há margem para melhorar o funcionamento do controle ao biológico em Portugal, a começar pela fiscalização às próprias certificadoras. Existe o risco do nivelamento por baixo na concorrência pela busca de novos clientes. As autoridades oficiais envolvidas (Ministérios da Agricultura e da Economia), em articulação com a ASAE, são chamadas a agir com maior rigor. É altura de divulgar anual e publicamente os resultados das análises feitas por cada certificadora, e também o controlo governamental a essas empresas. Só com transparência se defende quem trabalha bem e frequentemente é mais exigente que as próprias normas do setor.

Por outro lado o próprio artigo da revista Visão carece de transparência. Por exemplo a origem do financiamento para as análises. Quem arcou com os custos? É prática comum revelar quem paga para evitar encobrir conflitos de interesses. Não é preciso muita imaginação para pensar em setores económicos com vontade de desacreditar o biológico.

Outra dimensão que transcende o aspeto objetivo das análises é o tom que repassa todo o texto. Fraude é um ato de má fé, para enganar. Embora a certa altura se diga que os incumprimentos não são necessariamente fraude, a Visão e o jornalista enviesaram a peça no sentido de deixar marcada a sensação de fraude generalizada no bio. Esta postura talvez não seja de admirar visto que em 23.7.2016 o mesmo profissional apresentava os benefícios ambientais do biológico como sendo um “mito”. Esses mesmos benefícios ambientais que, na peça atual, acabam por ser os únicos reconhecidos.

Resumindo, por arrasto de análises que provam que há problemas, retirou-se a conclusão que a agricultura biológica é um problema. Se o objetivo era pôr em causa toda a fileira, a escolha do único entrevistado sobre a lógica global do bio não podia ser mais acertada: o Prof. Pedro Fevereiro, que dirige uma associação financiada pela indústria dos pesticidas e transgénicos.

A comparação científica entre produtividades das duas formas de agricultura envolve muita controvérsia, e os benefícios para a saúde e ambiente da agricultura biológica precisam de mais estudo. Mas “o elefante na sala” é que a agricultura convencional é esmagadoramente insustentável. A maior análise sobre o futuro da agricultura, liderada pela FAO e pelo Banco Mundial e que envolveu centenas de cientistas durante vários anos, concluiu que é necessária uma profunda transformação agrícola para fazer face aos desafios das próximas décadas. Por isso não sabemos tudo sobre a agricultura biológica em grande escala, mas podemos partir com segurança de uma premissa: o paradigma agrícola dominante não serve. A maior fraude é tentar convencer o público do contrário.

Jorge Ferreira (Engº agrónomo, Consultor da produção biológica na Agro-Sanus)
Margarida Silva (Bióloga, Professora da Universidade Católica e colaboradora da Plataforma Transgénicos Fora)

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