Glifosato, Transgénicos e (falta de) Precaução
O glifosato é um herbicida muito usado em Portugal, quer na agricultura quer em espaços urbanos, e o seu uso tem vindo a aumentar: em 2001 eram 700 e uma década depois são já 1400 as toneladas aplicadas anualmente. O nome em si – glifosato – não será muito conhecido, porque identifica apenas a substância ativa principal. Na prática em Portugal ele é vendido por múltiplas empresas sob mais de 60 nomes comerciais diferentes (Roundup, Spasor, Tornado, Montana, Touchdown, etc) sem falar das misturas com outros herbicidas. Aparentemente não existem quaisquer máximos legais que limitem a aplicação de glifosato no ambiente e qualquer pessoa pode comprar Roundup/glifosato no hipermercado.
Para onde escorrem e se acumulam esses milhares de toneladas anuais? O ideal era que o glifosato simplesmente desaparecesse, mas tal não parece ser o caso. Segundo o Departamento de Pesticidas do Estado da Califórnia, o glifosato é moderadamente persistente no solo. Isso significa, ainda de acordo com a mesma fonte, que ao fim de cerca de 52 dias só se degradou metade do glifosato aplicado inicialmente. E que, depois de três meses e meio, ainda persiste 25% do teor presente no 1º dia.
Já a solubilidade em água varia consoante as formulações. À temperatura ambiente o glifosato propriamente dito dissolve-se até um máximo de 12 g/litro. Mas na forma de sal, que é a usada habitualmente nos herbicidas, um litro de água consegue dissolver até 900 gramas (p.ex. no caso do sal de potássio). Devido a esta elevadíssima solubilidade a Ficha de Segurança do Roundup avisa que o produto não deve entrar em contacto com canais de irrigação e outras linhas de água.
Monitorização da água?
Face a tal alerta seria avisado incluir o glifosato nos planos de monitorização da água em Portugal. Mas este químico não consta das listas dos pesticidas a pesquisar em águas destinadas ao consumo humano definidas para 2016, tal como já não constava em 2015, 2014 ou 2013. Ou 2012. O facto de o glifosato se degradar ainda mais lentamente em água do que em solo não parece ter impacto pedagógico junto do Ministério da Agricultura. Do lado do ambiente a sensibilidade não se afigura mais esclarecida: basta notar que a própria Administração da Região Hidrográfica do Tejo prevê em certas condições a aplicação de glifosato nas margens das linhas de água.
E na comida? Certamente que os extensos programas oficiais de monitorização de pesticidas em alimentos não serão omissos em relação ao herbicida mais aplicado no país? A resposta é… “nim.” Existe de facto um plano europeu que prevê a deteção de glifosato mas apenas em alguns (poucos) cereais. Mas na prática a teoria é outra: essas análises, ao que tudo indica, não têm sido feitas em Portugal. Na verdade já em 2015 era voz corrente que em 2016, mais uma vez, o glifosato iria ficar de fora.
Também não foi possível detetar, nos últimos quinze anos de relatórios de Controlo Nacional de Resíduos de Pesticidas em Produtos de Origem Vegetal disponibilizados online pelo Ministério da Agricultura, qualquer análise ao glifosato – apesar de tal programa de controlo incluir milhares de amostras e envolver centenas de pesticidas.
O Ministério da Agricultura argumentava em sua defesa, em janeiro de 2016, não estar na posse de informações que indiquem ser o glifosato uma substância «passível de incluir em controlo de rotina quer em produtos agrícolas de origem vegetal, quer em águas destinadas a consumo humano pelo que não dispõe de dados que possa fornecer […]», ou seja, não possui quaisquer números sobre a situação do glifosato em Portugal.
O herbicida mais aplicado em todo o mundo… e em Portugal
Estamos, note-se, a falar de um químico que não consegue passar despercebido visto acumular dois méritos duvidosos a nível nacional: é o herbicida mais consumido e o segundo químico mais aplicado em toda a agricultura (a seguir ao enxofre). É, também, o herbicida mais aplicado em todo o mundo.
A assombrosa falta de curiosidade do Ministério da Agricultura pode ser vista sob um prisma otimista: quando não há análises, não há provas. E, sem provas, ninguém reclama. Entretanto quem quiser pode continuar a usar glifosato sem estados de alma, nomeadamente em produção integrada subsidiada pelas «Medidas agroambientais» que, supostamente, financiam as formas mais sustentáveis de agricultura.
Estão desde já desculpados os que sentirem a ironia no seu auge. Mas de facto o retrato do glifosato não ficaria completo sem considerar o seu vasto uso em zonas urbanas, onde serve para matar ervas em ruas, caminhos e zonas públicas de lazer. Aqui, e na sequência de um requerimento parlamentar do Bloco de Esquerda apresentado em 2015, cujos resultados foram divulgados em 2016, é possível traçar um retrato aproximado da situação municipal. E os valores falam por si.
Considerando a dose máxima autorizada em França para a agricultura, que é de cerca de 2 kg de glifosato por hectare e por ano (o que se traduz, para o caso por exemplo do Spasor, na aplicação de 6 litros de herbicida por hectare e por ano), ficamos a saber que Gondomar trata o equivalente a 660 campos de futebol com a dose máxima de herbicida – isto muito embora o concelho seja pequeno e as ruas e caminhos sejam apenas uma percentagem mínima da área total.
Já em Odivelas, e pese embora a abertura da edilidade a métodos não químicos, é referida a aplicação anual de 14350 litros de herbicida. Assumindo a proporção do Spasor, 92% da área do concelho será tratada com a tal dose máxima. Este valor é consistente com um concelho composto quase exclusivamente por arruamentos.
Estes dois exemplos são significativos pela sua representatividade nacional e não devem ser singularizados. Por outro lado nem todas as câmaras pensam da mesma forma e algumas – por enquanto uma pequena minoria – adotaram já alternativas mecânicas, térmicas e manuais que protegem cidadãos e ambiente.
Crescimento exponencial da contaminação
Não é só em Portugal que o consumo de glifosato está em crescendo. Análises realizadas noutros países mostram que ele está abundantemente presente no ar, solo, chuva, água de consumo, bebidas, muitos tipos de alimentos e até leite materno e urina humana. Isto não é de admirar num pesticida que é aplicado mundialmente à taxa de 720 mil toneladas por ano.
O que é notável é 72% do total de glifosato aplicado mundialmente nos últimos 40 anos… ter sido aplicado na última década. Isto equivale a dizer aproximadamente que nos últimos dez anos se gastou sete vezes (700%!) mais glifosato do que seria de esperar face a períodos anteriores. A razão foi desvendada em artigo científico recente e descreve-se numa sigla: OGM (organismos geneticamente modificados).
Glifosato e Organismos Geneticamente Modificados
Neste momento 80% dos transgénicos cultivados no mundo (embora não em Portugal) foram geneticamente manipulados para tolerar glifosato (www.agbioforum.org/v12n34/v12n34a10-duke.htm), ou seja, sobreviver à sua aplicação enquanto as infestantes (quando tudo corre como esperado) morrem. Desde que estas culturas foram introduzidas em 1996 o uso de glifosato – como seria de esperar – aumentou. O que ninguém se lembraria de antecipar é que esse consumo iria aumentar quase quinze vezes desde então. Atualmente, no seu conjunto, os OGM absorvem 56% de todo o glifosato consumido anualmente a nível mundial.
Este cenário, já de si tremendo, empalidece ao verificar-se que os OGM tolerantes ao glifosato estão circunscritos sobretudo a quatro espécies (soja, milho, colza e algodão) e a cinco países (no seu conjunto os Estados Unidos, Brasil, Argentina, Índia e Canadá representam 90% da área cultivada no mundo com OGM). Na calha das aprovações de novos OGM constam por exemplo o arroz e o trigo, espécies que – no seu conjunto – ocupam cerca de 400 milhões de hectares. Se, tal como a indústria pretende, estas variedades virem em breve a luz verde da comercialização, e se, tal como a Comissão Europeia pretende, elas começarem a ser cultivadas também na União Europeia, os números só poderão acentuar-se marcadamente no sentido da glifosatodependência.
Não será portanto coincidência que o teor máximo de resíduos de glifosato legalmente permitido tenha sido alargado sem qualquer base científica. A Comissão Europeia aumentou em 200 vezes a tolerância na soja (passou de 0.1 para 20 mg de glifosato/kg) em 1999. Os primeiros transgénicos tinham sido autorizados na União Europeia em 1996.
Glifosato enquanto sopa química
A problemática traçada ganha densidade consoante o nível de perigo do glifosato para a saúde e ambiente, mas a questão é mais abrangente do que se imagina. Se aplicarmos num terreno uma solução de 2% de sal de glifosato em água as plantas não morrem. Mas se aplicarmos um herbicida à base de glifosato, com a mesma concentração, as plantas já secam todas. O que é que mudou? No herbicida estão muitas outras substâncias químicas para além da substância ativa principal. Estes coadjuvantes por vezes são chamados inertes mas na verdade são altamente ativos e podem ser até mais tóxicos que o glifosato – 10 mil vezes mais tóxicos, nalguns casos.
No entanto quando se definem os limites legais de exposição ao glifosato só se estuda o glifosato propriamente dito, muito embora a população esteja exposta à sopa química presente na embalagem. Embora só o glifosato esteja identificado no rótulo (o resto é considerado segredo comercial) o impacto real pode ser significativamente superior ao estudado: muitas ordens de grandeza superior, se estivermos na presença de efeitos sinérgicos.
Desregulação hormonal e cancro
Investigação já de 2016 veio mostrar que pelo menos alguns destes coadjuvantes causam desregulação hormonal. As substâncias que perturbam o equilíbrio endócrino podem aumentar a produção ou a destruição de certas hormonas, imitar hormonas, mandar as células morrer ou multiplicar-se, etc, etc. As implicações podem ser dramáticas, mas nada disto foi tido em conta nos regimes legais europeus vigentes. Quanto ao atual texto da Comissão propõe-se banir um único coadjuvante.
Na verdade a desregulação hormonal é apenas um dos aspetos relevantes. Por exemplo Gasnier et al. demonstraram que os herbicidas à base de glifosato também são tóxicos para células humanas a concentrações realistas do ponto de vista da exposição ambiental – sendo que os coadjuvantes eram a componente mais tóxica.
Mas o que se sabe sobre os efeitos do glifosato por si só já é preocupante. Em 2015 a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou-o na categoria 2A, o que significa que está demonstrado que causa cancro em animais de laboratório e que nas pessoas tudo indica que também causa, embora as informações sejam mais limitadas.
Segundo a OMS o glifosato está relacionado em particular com o linfoma não Hodgkin (LNH), um tipo de cancro do sangue que está a aumentar em Portugal. Muito embora não seja possível demonstrar que os casos deste cancro são devidos a uma particular substância, é relevante que Portugal apresente, dos 41 países europeus para os quais a OMS sistematiza informação, uma taxa de mortalidade claramente superior à média da União Europeia: é o sétimo país europeu onde mais se morre de LNH e é o 9º cancro mais frequente a nível nacional. Alguma razão deve existir, e o glifosato pode ser uma delas – seria boa ideia despistar esta hipótese.
O caso paradigmático da Argentina
Neste momento o cancro é apenas um dos problemas em jogo, e pode nem ser o principal. E, como pensar apenas em glifosato é uma abstração teórica – ninguém está exposto apenas à substância principal do herbicida – veja-se o que se passa num dos países onde os estudos olharam para a vida real: a Argentina. Mais de metade da área agrícola argentina é cultivada com soja transgénica tolerante ao Roundup, a qual recebe cerca de 200 milhões de litros desse herbicida por ano.
Uma das consequências foi detetada por uma equipa da Universidade de Buenos Aires que publicou, em 2010, o primeiro de vários estudos onde se estabelece uma relação causa-efeito entre a exposição ao Roundup e o aumento de defeitos de nascimento (incluindo microcefalia e outras malformações nervosas e ósseas). O mais importante é que estes efeitos teratogénicos ocorrem a doses inferiores às verificadas nos campos agrícolas e como tal permitem explicar o aumento de defeitos de nascimento que efetivamente se deteta nas zonas rurais daquele país.
Estes cientistas detetaram malformações a concentrações de 2 mg de glifosato/kg. Em termos de comparação, e tal como referido acima, o limite para o glifosato na soja é de 20 mg/kg. Os valores não são diretamente comparáveis, pois o glifosato consumido vai sendo gradualmente descartado (mas não é claro quanto é retido nem a que velocidade é expelido). Onde já se pode estabelecer uma comparação direta é com análises à urina a voluntários alemães publicada este ano, onde se detetaram contaminações até 0.2 mg/kg. Aqui fica claro quão próxima a população europeia já está de valores demonstradamente problemáticos. É uma questão de tempo até se publicarem análises de urina com valores superiores aos 2 mg/kg. Esperemos que não seja Portugal a ganhar essa corrida.
Porque não há medidas eficazes de proteção?
O espaço não o permitiria e este artigo não pretende sintetizar todo o espetro de impactos na saúde humana já identificados na literatura científica (que abrangem desde doença de Parkinson a hipertensão gravídica), e nem sequer aborda os impactos ambientais igualmente demonstrados. O que vale a pena explorar é o porquê da ausência – há décadas – de medidas eficazes de proteção. É verdade que na década de 1970 se pensava que, como o passo bioquímico que o glifosato bloqueia em plantas, e que o torna um herbicida, é um passo que não existe em animais, não haveria problemas. Isso ajuda a desculpar o passado.
Mas aí reside só parte da história. Outra peça do puzzle é que dois dos laboratórios americanos que fizeram os estudos iniciais foram mais tarde apanhados a falsificar vários trabalhos com outras substâncias. No caso do glifosato, por exemplo, repetiu-se já este século uma experiência crucial que tinha sido inicialmente realizada em 1978 e verificou-se que, em 31 anos, a toxicidade do glifosato tinha aumentado 300 vezes! Diferenças desta monta deixam entrever potenciais conflitos de interesses logo desde o início.
Em 2016 já se sabe muito mais mas, ainda assim, não fora a rebelião inesperada de quatro governos (França, Suécia, Itália e Holanda), já a Comissão Europeia teria em março reautorizado o glifosato até 2031. No momento da elaboração do presente artigo a controvérsia está em curso e envolve tanto cientistas como políticos.
As contradições dos pareceres oficiais
A posição da Comissão assenta num parecer da EFSA – Autoridade Europeia de Segurança Alimentar onde é negada a relação entre glifosato e cancro identificada pela OMS. Este parecer de facto não foi escrito pela EFSA mas sim pela Alemanha, que é o Estado Membro relator na matéria. O documento em si é proveniente do Instituto Federal de Avaliação de Risco (BfR) e propõe até que a dose diária admissível de glifosato seja alargada de 0.3 para 0.5 mg/kg/dia. Quem é o BfR, e porque é que terá posição tão inesperadamente antagónica face à OMS? Não se espera que a ciência permita demonstrar tudo e o seu oposto.
Uma visita à página da Comissão de Produtos Fitossanitários e Respetivos Resíduos do BfR permite entrever uma primeira explicação: três dos seus 13 membros são funcionários da Bayer ou da BASF. Estas duas empresas, junto com uma vintena de outras, compõem a Glyphosate Task Force (www.glyphosate.eu/legal-notice) – a estrutura organizada pela indústria para garantir a reautorização do glifosato na União Europeia. Se tal situação não personificasse já um flagrante conflito de interesses acrescente-se que o BfR não publicou o seu parecer, impedindo assim o acesso de especialistas independentes, mas deu-o a conhecer à indústria em vários momentos.
O diferendo entre o BfR e a OMS centra-se na potencial carcinogenicidade do glifosato. Outros aspetos, como a desregulação hormonal, não fazem parte do mandato da OMS e não foram objeto de avaliação definitiva. Prova disso é a determinação da Comissão Europeia para que a indústria apresente provas de que esse efeito não é problema… até 1 de agosto de 2016, meses depois da data da prevista autorização. Há qualquer coisa de notável num processo de decisão que permite primeiro e verifica depois. E antes que se possa pensar que se tratou de um lapso atente-se que o mesmo se passa com a ECHA – European Chemicals Agency cuja avaliação do glifosato é esperada para 2017.
No que concerne ao cancro, um artigo publicado em março de 2016 na revista científica Journal of Epidemiology and Community Health e assinado por 94 investigadores esclarece o possível na dicotomia entre as posições em confronto. Nele se desvenda, com contornos de mistério policial, como o BfR desconsiderou vários estudos epidemiológicos de longo prazo (onde se evidenciava o risco acrescido de linfoma não Hodgkin em trabalhadores agrícolas), valorizando estudos mais curtos (quando o cancro ainda não é aparente).
Ainda mais inexplicável foi a preferência do BfR por estudos secretos da indústria (isto é, não publicados e indisponíveis para confronto independente) em detrimento de artigos acessíveis na literatura científica e conformes aos protocolos de investigação em vigor. Estas e outras astúcias – como por exemplo elencar um trabalho na tabela inicial de síntese da literatura mas depois simplesmente ignorá-lo durante a análise detalhada dos dados – permitiram ao BfR, segundo os mesmos autores, concluir pelo que a indústria mais pretendia ouvir.
Admitindo que faltou independência ao parecer do BfR, outros níveis de salvaguarda estão previstos que poderiam ter retificado a falha. Na fase, por exemplo, da arbitragem pela EFSA. O que é que se passa nesta agência? O mais detalhado levantamento de conflitos de interesse entre as centenas de cientistas que trabalham para a EFSA foi publicado em 2013 e verificou que, em média, 58% têm ligações diretas ou indiretas às indústrias cujos produtos estão a avaliar. No caso do painel que avalia pesticidas e seus resíduos a média é 62%: 13 dos 21 membros (à data) não eram independentes dos interesses económicos das empresas relevantes.
Estas conexões nefastas foram sucessivamente criticadas pelo Parlamento Europeu e pelo Provedor Europeu mas isso não impediu a EFSA de, já este ano, ter ido buscar diretamente a um lóbi alimentar inglês a sua nova diretora de comunicação. Outro caso visível foi o de Diána Bánáti, presidente do conselho de administração da EFSA durante vários anos e que, antes e depois desse período, trabalhou para o ILSI – uma estrutura financiada pela indústria alimentar, farmacêutica, dos pesticidas e dos transgénicos. Numerosíssimos outros casos de «portas giratórias» em posições cruciais da EFSA poderiam ser citados mas o cerne não muda: a erosão da integridade institucional está instalada e basta querer para ver.
Quem defende os portugueses?
Os portugueses poderiam esperar – e seria razoável acreditarem – numa última linha de defesa: a do seu próprio Ministério da Agricultura, através da Direção Geral de Alimentação e Veterinária que representa o país no comité especializado perante quem a Comissão Europeia apresentou a proposta de reautorização do glifosato. No entanto as informações disponíveis indicam que Portugal se posicionou a favor dessa medida (a votação em si não chegou a ter lugar) – num alinhamento que se mantém ao longo de sucessivos governos.
Em entrevista ao jornal Expresso de março de 2016 a DGAV deixa claro que discorda da OMS e se identifica com a EFSA, a Comissão Europeia e… a Glyphosate Task Force. Só para os mais distraídos poderia parecer inocente a decisão de concordar com a indústria em detrimento de um painel de cientistas independentes cuja classificação para o glifosato maximiza a proteção da saúde e do ambiente. Considerando que a DGAV não é uma estrutura científica, não parece sequer curial que se permita emitir avaliações quanto à qualidade relativa dos vários pareceres em jogo com base em argumentos científicos. Uma discussão política, essa, seria apropriada e bem-vinda. Desejavelmente tomaria a forma do Princípio da Precaução: enquanto a ciência não falar a uma só voz, as opções mais cautelosas são as que melhor servem os interesses da sociedade.
RAPOSAS MILIONÁRIAS
A história recente do herbicida glifosato é como uma parábola a apontar como o sistema oficial de autorização de pesticidas se tornou disfuncional e até perigoso. Provavelmente espelha também o que se passa noutros quadrantes com impacto comercial. A ciência é deformada pelo dinheiro e esta realidade, já demonstrada para o mundo médico, farmacêutico, alimentar e até da engenharia genética, ainda não infiltrou a dimensão governamental muito embora esteja há muito plasmada na linguagem popular: não se põe a raposa a guardar o galinheiro.
O glifosato é o químico que a indústria não pode perder (em 2015 os herbicidas à base de glifosato renderam quatro mil milhões de euros em vendas e mais de mil milhões em lucros, só à Monsanto). Os OGM, e toda uma lógica agrícola, dependem da sua continuidade. Mais importante ainda, a perda do glifosato nesta encruzilhada representaria um precedente que, qual castelo de cartas, faria tremer os outros químicos da parafernália do agronegócio planetário. Não percam os próximos episódios deste braço de ferro – surpreendente, sobretudo, por ter já durado bem mais do que a indústria previa.
Margarida Silva, bióloga
Texto originalmente publicado na revista CULTIVAR – Cadernos de Análise e Prospetiva (nº4 – 2016)
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