Indústria 1 – Cidadãos 0, na mais recente avaliação sobre o glifosato
2017/03/15 – Desde que em 2015 a OMS – Organização Mundial de Saúde classificou o glifosato como sendo uma substância que “provavelmente” causa cancro em pessoas e que “demonstradamente” causa cancro em animais de laboratório o futuro na Europa do herbicida mais vendido no mundo (e em Portugal) tornou-se uma questão de intenso debate científico, social e político. Após anos de adiamentos, os Estados Membros e a Comissão Europeia deverão decidir em 2017 se reautorizam os herbicidas à base de glifosato, e por quanto tempo. Em cima da mesa estão os pareceres positivos do país relator (Alemanha), da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) e as sucessivas propostas da própria Comissão Europeia para que o herbicida seja aprovado (ver por exemplo aqui e aqui). Hoje, com o parecer da ECHA (Agência Europeia dos Produtos Químicos), também ele positivo, foi tornada pública uma das últimas peças deste puzzle.
Neste momento importa entender o que poderá significar uma diferença de 180 graus entre pareceres científicos sobre o mesmo assunto. Embora em abstrato os pareceres devessem chegar à mesma conclusão, isso em ciência frequentemente não acontece e o caso do glifosato não foi exceção. Se dois grupos de especialistas têm conclusões opostas, alguma conclusão é melhor que outra? Haverá critérios que possam ser usados para escolher? A resposta às duas perguntas é Sim. A controvérsia científica normalmente é sinónimo de informação incompleta. Então, uma vez que ainda não há certezas, a decisão política deve errar para o lado da precaução, ou seja, escolher a opção que mais protege a saúde e o ambiente – o que, para o glifosato, significa proibir o seu uso. A alternativa (arriscar) só se justifica em casos de força maior e a opinião pública europeia não vê essa opção com bons olhos.
Por outro lado a controvérsia científica pode ter uma explicação menos benigna. Tal como a indústria do tabaco durante anos mentiu sobre o risco de cancro do pulmão, e a indústria petrolífera aprendeu cedo a pôr em causa a ciência das alterações climáticas, pode haver cientistas cuja preocupação seja mais o lucro da agroindústria do que a proteção da sociedade agora e no futuro. Que factos podem ser apurados atualmente? No caso do parecer alemão, a avaliação do impacto do glifosato na saúde ficou a cargo do Bundesinstitut für Risikobewertung (BfR – Instituto Federal de Avaliação de Risco). Muito embora seja uma estrutura oficial o BfR apresenta, na sua Comissão de Produtos Fitossanitários e Respetivos Resíduos, nada mais nada menos do que três funcionários das multinacionais que produzem pesticidas, incluindo o glifosato (2 da BASF e 1 da Bayer). O conflito de interesses é tão óbvio que quase parece normal. A situação torna-se ainda mais absurda quando se pode ler, no relatório do BfR, que o texto não foi feito de raiz pelo instituto: “por falta de tempo” usaram um documento produzido pela indústria e limitaram-se a editá-lo. Alguém de bom senso acredita que este é o caminho para encontrar a verdade?
No caso da EFSA os conflitos de interesse também são visíveis: 62% dos especialistas que integram o painel de avaliação de pesticidas apresentam conflitos de interesse relacionados com ligações financeiras à respetiva indústria. E na Agência Europeia dos Produtos Químicos? Vários membros do comité relevante têm igualmente ligações à indústria.
Talvez agora seja mais simples perceber a diferença entre as conclusões destas estruturas e a Organização Mundial de Saúde. Esta última emprega dois critérios absolutamente essenciais à credibilidade dos seus pareceres (e que não foram seguidos pelas restantes agências): os cientistas não podem ter qualquer conflito de interesses (real ou potencial) e os estudos em que se baseiam são públicos e disponíveis para qualquer outro especialista analisar independentemente.
Resumindo:
– três agências onde há cientistas em conflito de interesses chegaram à conclusão que o glifosato pode ser reautorizado;
– uma agência onde os cientistas são independentes da indústria chegou à conclusão que o glifosato causa cancro em animais de laboratório (e provavelmente em pessoas também);
– só uma das multinacionais envolvidas (a Monsanto) ganha anualmente mais de 5 mil milhões de dólares com as vendas de herbicidas à base de glifosato.
Dito isto, alguém de boa fé ainda acredita que o glifosato deva ser reautorizado? Se prefere jogar pelo seguro, diga isso mesmo à Comissão Europeia.
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