Como se os cientistas tivessem sempre razão
O debate sobre a inocência do glifosato envolve os atores previsíveis, desde ambientalistas a agricultores, responsáveis autárquicos e governamentais, cientistas, empresas da agroquímica e, claro, o consumidor anónimo. De um lado está a decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) que em 2015 classificou este herbicida como cancerígeno em animais de laboratório e do outro figuram numerosas agências reguladoras (EFSA, ECHA, EPA…) que chegaram a uma conclusão de sinal oposto.
A reautorização do glifosato em 2017 pela União Europeia não encerrou a discussão. Em 2022 teremos nova votação e não se afigura algum momento de tréguas até lá. Para uns está em causa a viabilidade económica da atividade agrícola, para outros a proteção da saúde humana, para muitos o direito a definir o modelo de alimentação que melhor serve a sociedade agora e no futuro.
É difícil exagerar o lugar preponderante do glifosato. É o herbicida mais usado em Portugal, na Europa e no resto do mundo. Em 2015 os herbicidas à base de glifosato renderam quatro mil milhões de euros em vendas e mais de mil milhões em lucros, só à Monsanto (agora Bayer). Nos últimos dez anos vendeu-se sete vezes mais glifosato do que na década anterior e o ímpeto não dá sinais de abrandar.
Com tal visibilidade o escrutínio científico do glifosato só pode ser particularmente incisivo, cuidadoso e definitivo. Afinal de contas, se não conseguimos estudar um químico com tal palmarés – e no mercado já desde os anos 70 – ao ponto de encontrar as respostas de que precisamos, dificilmente teremos capacidade para avaliar qualquer outro.
Os Estados Membros da União, durante anos envolvidos na avaliação do conhecimento científico relevante, concordaram que há uma altura em que é preciso pôr um ponto final apesar dos protestos dos ecologistas. Ao fim de “mais de 800 estudos […] a apontar para a sua segurança“, como lembra a Monsanto, incluindo o maior estudo jamais realizado com agricultores – que “demonstra definitivamente para condições realistas que o glifosato não causa cancro“, está na altura de deixar a ciência falar por si.
Esta mesma conclusão era partilhada pelo agora falecido cientista Norman Borlaug, Prémio Nobel da Paz e frequentemente apelidade de pai da Revolução Verde, que toda a vida se esforçou para que houvesse comida para todos e todos pudessem comer. O seu trabalho enquanto agrónomo foi impactante e a sua preocupação humanitária inquestionável. Em relação aos ambientalistas que sistematicamente se recusavam a aceitar as evidências científicas e bloqueavam o acesso da humanidade a uma tecnologia tão útil a sua opinião era clara: não passavam de propagandistas do medo com ética duvidosa, irresponsáveis organizadores de campanhas maldosas e histéricas.
Sobre o livro “Primavera Silenciosa” (escrito por Rachel Carson) que marca o início do movimento ambientalista, Norman Borlaug considerou-o um ataque distorcido, vitriólico e amargo. Tudo isto porquê? Porque segundo ele estava amplamente provado que o DDT era seguro para pessoas e ambiente mas os ambientalistas teimavam em questioná-lo. Note-se: Borlaug tinha – alguma – razão. O DDT começou a usar-se como inseticida na agricultura logo após a II Guerra Mundial (1945) e durante décadas foram feitos estudos que não detetaram qualquer relação entre DDT e cancro. Só em 2007 foi publicado um trabalho que procurou onde outros não tinham visto… e verificou que as mulheres expostas ao DDT antes dos 14 anos tinham cinco vezes mais probabilidades de vir a ter cancro da mama do que as demais.
O facto de o DDT afinal ser cancerígeno, após 62 anos em que se achou que era inócuo para a saúde humana, não prova que o glifosato seja igualmente causador de cancro. Mas a analogia é evidente: a ciência não permitia provar que o DDT era inocente, e ainda assim foi essa a conclusão que se tirou. Atualmente a ciência também não permite provar que o glifosato é inocente mas até cientistas se apressam a apregoar tal conclusão, embora bastasse conhecer a natureza do método científico para compreender a infantilidade de tais teses absolutistas.
O DDT é um bom exemplo de como a ciência é maltratada até por cientistas, mas infelizmente não é único. Daí que se justifiquem as reservas do público quando ouve alegações de segurança que intuitivamente não batem certo. É verdade que há mais agências a apostar na inocência do glifosato do que na sua culpa, mas a ciência não é uma democracia. A OMS pode ser a única estrutura científica a concluir que o glifosato causa cancro em animais de laboratório, mas a verdade é que também é a única que impõe regras draconianas para evitar conflitos de interesses nos cientistas que escrevem os seus pareceres – pareceres esses que excluem estudos secretos e se limitam à literatura efetivamente científica (publicada, com revisão por pares, disponível para escrutínio público).
O caso do glifosato mostra-nos duas formas antagónicas de estar na ciência e na vida. Podemos deixar-nos embalar pelo orgulho da imensidão do conhecimento já recolhido ou olhar humildemente para o que falta entender… e cuja dimensão cresce mais depressa que a do próprio conhecimento. Estamos portanto condenados a saber cada vez menos (em função do total disponível), mas a arrogância teima em convencer-nos do oposto. Quem se deixar encantar por esta sereia nunca vai entender o problema do glifosato.
Margarida Silva, bióloga
26 de fevereiro de 2019
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