OGM: As provas existem
No seu editorial de 25 de Agosto do corrente ano o semanário Expresso afirmava, taxativamente: “Não há qualquer – uma só – prova científica de que o milho transgénico (da qualidade que é autorizado em Portugal e na Europa) seja pernicioso para a saúde.” A segurança alimentar e ambiental dos organismos geneticamente modificados (OGM, transgénicos) em circulação no espaço europeu é certamente uma das questões centrais na contestação que lhes é movida e a posição do editorialista, a estar correcta, desarmaria muitas das críticas que se têm ouvido ao longo da última década. Vale pois a pena verificar a (in)existência de provas científicas. Claro que a ausência de prova, por si só, não prova a ausência de riscos. Mas sem qualquer prova documentada de impacto negativo dificilmente se justifica accionar medidas restritivas contra os OGM, mesmo ao abrigo do Princípio da Precaução.
Deixem-se de lado todas as provas relativas aos restantes OGM aprovados actualmente para alimentação humana na União Europeia (soja, colza e algodão) e olhe-se para o que a ciência já permite dizer quanto ao milho transgénico referido pelo jornal. Ficam igualmente para outra oportunidade quaisquer considerações sobre eventuais impactos ambientais. A análise de risco, note-se, não é uma forma de democracia. Se, em cem estudos, noventa e nove não detectam consequências negativas e apenas um único revela determinado impacto, não se faz a média nem ganha a maioria. Tal estudo singular, depois de cientificamente validado, faz prova suficiente e demonstra impacto para o aspecto específico em análise.
Na União Europeia já foram aprovadas diversas variedades de milho transgénico para consumo humano: Bt 176, MON 810 (também autorizado para cultivo), T-25, Bt-11, MON 809, NK 603, MON 863, 1507, GA 21 e ainda o híbrido MON 863 x MON 810. Todas elas são do tipo Bt, ou seja, são transgénicas devido à introdução de genes originários do Bacillus thuringiensis, uma bactéria do solo que produz insecticidas há muito empregues, por pulverização, em agricultura convencional e biológica.
As proteínas Bt originais, isto é, produzidas directamente pelas bactérias, não são inócuas, sendo particularmente afectados os trabalhadores que as aplicam.(1) Os sintomas típicos incluem rinite alérgica, dermatite, prurido, inchaço, eritema, angiodema e um acentuar da asma.(2) Num estudo laboratorial com ratos verificou-se que a exposição por injecção à toxina Bt desencadeou uma reacção imunitária sistémica e local “tão potente como a da toxina da cólera.”(3) Num outro estudo, a exposição nasal e rectal induziu igualmente resposta imunitária.(4) De notar que existem receptores para Bt à superfície do intestino de primatas(5) (foram testados tecidos de macacos Rhesus) o que pode ajudar a explicar o eventual impacto humano numa exposição via ingestão.
As aplicações de Bt convencional são externas e eficazes apenas durante poucos dias, devido à biodegradação a que a toxina está sujeita. Após a colheita o produto final – o grão – apresenta assim uma concentração de Bt que pode ser centenas ou milhares de vezes menor que a encontrada em milho transgénico.(6) Neste caso dos OGM a toxina é produzida em elevada quantidade nos tecidos da própria planta e, como está contida no interior da semente, não está sujeita a degradação rápida, pelo que o Bt chega intacto aos consumidores. Para além deste aspecto há a referir o facto de que o gene empregue em engenharia genética conduz directamente à forma activa da proteína Bt, ao contrário da pulverização convencional onde se aplica uma protoxina que é activada pelo pH elevado dos estômagos de alguns dos insectos que se alimentam dessas plantas.(7) Sendo pré-activada, a versão geneticamente modificada (GM) pode portanto interagir com um leque mais vasto de seres vivos uma vez que não tem de passar pelo momento – que lhe confere elevada especificidade no alvo – que é a clivagem em ambiente alcalino.
A legislação europeia prevê que a demonstração de segurança dos OGM seja realizada através de estudos químicos, bioquímicos e biológicos, incluindo a realização de testes em animais de laboratório (mas não em pessoas). Assume-se que, se forem detectados impactos no metabolismo animal devido ao consumo de OGM, tais produtos não poderão ser comercializados para consumo humano.
Quando uma empresa empenhada na comercialização de determinado transgénico faz um estudo que aponta para a total segurança e inocuidade dessa planta, sobretudo se tal trabalho não passa pelos trâmites da publicação científica convencional sujeita a revisão pelos pares, pode ou não acreditar-se em tais resultados. Mas quando os dados empresariais demonstram um impacto negativo significativo, é de crer que tais dados estejam correctos. Isso mesmo aconteceu com o milho MON 863, da Monsanto. Esta empresa realizou um estudo de 90 dias que, de acordo com um artigo científico recentemente publicado(8) onde é realizada uma análise estatística independente (só possível após acção legal que forçou o acesso aos dados originais mantidos secretos pela empresa até então), revela um aumento de até 40% dos triglicerídeos do sangue em ratos fêmea e uma redução de até 30% do fósforo e sódio na urina de ratos macho. Também se detectaram alterações no peso dos animais: os machos cresceram menos que os animais de controle, e as fêmeas cresceram mais. Estes valores são estatisticamente significativos e estão directamente relacionados com o consumo do milho transgénico. Detectaram-se mais impactos negativos mas, dado o pequeno tamanho dos grupos de teste, não foi possível retirar conclusões definitivas sobre estes últimos.
As circunstâncias peculiares deste estudo – o facto de ter sido realizado sob controlo da empresa mas analisado por uma equipa independente e publicado de acordo com as regras científicas – permite atribuir aos resultados uma importância e credibilidade invulgares. Esta é precisamente a prova que o editor do Expresso não sabia que existia. Ao contrário do que as empresas afirmam, consumir milho convencional e consumir milho transgénico não é a mesma coisa e nestes casos a lei não permite aprovação comercial. Ainda assim trata-se de um único estudo, que deveria ser replicado por diferentes laboratórios e países, até porque muitas questões continuam por responder. Deveria igualmente ser aplicado às restantes variedades de milho transgénico em circulação. E, necessariamente, a circulação do MON 863 deveria ser suspensa, ao abrigo do Princípio da Precaução, até a informação científica acumulada confirmar uma decisão definitiva.
Com o milho T-25 da Bayer foi realizado um outro trabalho(9) que, embora não obedecendo às regras da ciência acima mencionadas, não deixa de ser sugestivo visto ter sido igualmente desenhado e conduzido sob controlo da empresa. Trata-se de uma experiência de 42 dias com galinhas em que o grupo de teste alimentado com o milho GM apresentou o dobro da mortalidade do grupo de controlo, ganhou menos peso e sofreu de maior variabilidade no peso corporal. Devido ao pequeno número de animais envolvidos e elevada variação dos pesos corporais logo à partida estas diferenças não puderam ser demonstradas estatisticamente. Lamentavelmente o estudo não foi ampliado, repetido ou publicado numa revista científica.
Existem numerosos trabalhos científicos que, não demonstrando directamente impacto negativo dos OGM na saúde, apontam para problemas cujas implicações, actualmente por desvendar, poderão vir a revelar-se significativas. Uma das questões em causa prende-se com a instabilidade genética das construções transgénicas. Dois grupos franceses e um belga estudaram as sequências do DNA de alguns OGM em circulação e encontraram numerosas diferenças em relação à construção original descrita anos atrás pelas respectivas empresas. Traavik e Heinemann(10) sistematizaram os dados disponíveis da seguinte forma: delecções foram encontradas em MON 810, GA 21 e Bt 176, repetições invertidas ou em tandem apareceram em T-25, Bt 176 e GA 21, recombinações foram detectadas em T-25 e Bt 176 e finalmente o MON 810 apresentou fragmentos transgénicos rearranjados e dispersos pelo genoma.
De notar que a demonstração de estabilidade genética é um dos requisitos para aprovação legal na União Europeia. Os rearranjos encontrados colocam em cheque a validade de quaisquer conclusões de segurança obtidas com as variedades transgénicas na sua sequência original. Na prática isso implica que as versões do milho GM actualmente em circulação são diferentes das iniciais e, como tal, não foram estudadas nem sujeitas a qualquer avaliação. Embora tal falha não prove impacto, prova claramente a incapacidade do sistema regulador em garantir a priori a segurança dos consumidores.
Um outro trabalho científico(11) merece referência devido às implicações que acarreta para todos os OGM em circulação. A experiência analisou histologicamente o intestino delgado de ratos, mas de uma forma inovadora: para além do grupo de teste e do controlo negativo (o primeiro alimentado com batatas transgénicas produtoras de uma determinada lectina e o segundo com batatas isogénicas convencionais), foi mantido um terceiro grupo exposto a uma dieta de batatas convencionais suplementadas com essa mesma lectina.
De acordo com o dogma vigente no mundo da engenharia genética uma planta transgénica é igual à soma da planta original com a proteína introduzida, pelo que não podem existir diferenças entre o primeiro e o terceiro grupos. Ou seja, quaisquer resultados que simultaneamente sejam encontrados no primeiro grupo e estejam ausentes do terceiro grupo serão devidos ao processo de manipulação genética da batata e não à ingestão da proteína introduzida. A manipulação genética é precisamente o passo comum a todas as plantas obtidas por transgénese.
Mas foram encontradas diferenças no estudo referido. Os ratos que consumiram batatas transgénicas apresentaram um espessamento da parede do jejuno (devido a proliferação celular) e, no ceco, um decréscimo do espessamento normal da respectiva mucosa. Os animais do terceiro grupo, alimentados com batatas normais mais o suplemento de lectina em causa, não apresentaram tais sintomas mesmo quando a concentração de lectina era 1000 vezes superior à existente nas batatas transgénicas (situação essa testada num outro estudo(12) ).
A conclusão mais razoável destes dados é que a introdução de um gene num ecossistema molecular pode conduzir a alterações funcionais em diferentes pontos desse ambiente genético para além da mera adição de um gene. São sobejamente conhecidas (ver, por exemplo, Latham et al(13) ) alterações inesperadas do genoma original aquando da inserção de transgenes, com milhares de mutações por evento, translocações de dezenas de milhar de bases, delecções de genes inteiros, alteração dos padrões de expressão de múltiplos genes, activação directa e permanente de genes (devido à presença do promotor transgénico), activação de transposões, etc. Tais alterações podem passar completamente despercebidas durante o processo de aprovação europeu, eventualmente revelando as suas possíveis consequências negativas numa fase de comercialização em que a relação causa-efeito pode demorar décadas a ser detectada.
No presente texto pretendeu-se mostrar resumidamente que a ciência já começa a ter dados sólidos para apresentar à sociedade em geral e à classe política em particular sobre os contornos sanitários das variedades aprovadas de milho GM. Não foram considerados outros aspectos igualmente relevantes, como os impactos ambientais, o sistema de aprovações e fiscalização propriamente dito, a falta de investigação científica independente e ainda todo o trabalho disponível sobre os restantes OGM em circulação. Sobre as vastas repercussões sociais e alimentares – e médicas – da realidade aqui apresentada, caberá ao leitor(a) retirar as suas próprias conclusões.
Margarida Silva
Setembro 2007
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Referências:
1. Noble, M; P Riben; G Cook (1992) Microbiological and epidemiological surveillance program to monitor the health effects of Foray BTK spray. Ministry of Forests, Vancouver, B.C.
2. Bernstein, I et al (1999) Immune responses in farm workers after exposure to Bacillus thuringiensis pesticides. Environmental Health Perspectives 107(7):575-582.
3. Vázquez, R et al (1999) Bacillus thuringiensis Cry1Ac Protoxin is a Potent Systemic and Mucosal Adjuvant. Scandinavian Journal of Immunology 49(6):578-584.
4. Moreno-Fierros, L et al (2000) Intranasal, rectal and intraperitoneal immunization with protoxin Cry1Ac from Bacillus thuringiensis induces compartmentalized serum, intestinal, vaginal and pulmonary immune responses in Balb/c mice. Microbes and Infection 2(8):885-90.
5. Noteborn, H et al. (1995) Safety assessment of the Bacillus thuringiensis insecticidal crystal protein CryIA(b) expressed in transgenic tomatoes. In: Engel, K-H; G Takeoka; R Teranishi; eds. Genetically modified foods: safety issues. ACS Symposium Series 605:134-47. Washington, DC.
6. Szekacs, A et al (2005) Levels of expressed Cry1Ab toxin in genetically modified corn DK-440-BTY (YIELDGARD) and stubble. FEBS Journal 272 (s1) L3-005.
7. Smith, J (2007) Genetic Roulette: The documented health risks of genetically engineered foods. Yes Books, Fairfield, IA.
8. Séralini, G-E; D Cellier; J Vendomois (2007) New Analysis of a Rat Feeding Study with a Genetically Modified Maize Reveals Signs of Hepatorenal Toxicity. Archives of Environmental Contamination and Toxicology 52:596–602.
9. Leeson, S (1996) The effect of Glufosinate Resistant Corn on Growth of Male Broiler Chickens. Department of Animal and Poultry Sciences, University of Guelph. Report No. A56379.
10. Traavik, T; J Heinemann (2007) Genetic Engineering and Omitted Health Research:
Still No Answers to Ageing Questions. TWN Biotechnology & Biosafety Series 7, Penang, Malásia.
11. Ewen, S; A Pusztai (1999) Effect of diets containing genetically modified potatoes expressing Galanthus nivalis lectin on rat small intestine. The Lancet 354(9187):1353-4.
12. Pusztai, A et al (1990) Relationship between survival and binding of plant lectins during small intestinal passage and their effectiveness as growth factors. Digestion 46 Suppl 2:308-16.
13. Latham, J; A Wilson; R Steinbrecher (2006) The Mutational Consequences of Plant Transformation. Journal of Biomedicine and Biotechnology 2006(2):25376.
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(Texto publicado no número de Setembro/Outubro 2007 do Boletim Informativo da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos)
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