Arroz Dourado – A visão de um Eldorado transviado

Arroz Dourado – A visão de um Eldorado transviado

A criação de plantas transgénicas com vista ao melhoramento dapropriedades nutricionais (biofortificação) revelou-se uma estratégia tão controversa e criticável quanto a dos restantes tipos de alimentos geneticamente modificados. Este pequeno comentário centra-se apenas no alimento biofortificado mais conhecido, o arroz dourado, cuja fama lhe garantiu até presença num exame nacional de biologia do 12º ano (2ª fase de 2006). À partida não poderia ser uma iniciativa mais nobre: resolver um problema dramático e muito real que é a subnutrição na forma de avitaminose A, cujas consequências vão desde a cegueira à morte prematura. Este é um desafio de muitos países em vias de desenvolvimento: a Organização Mundial de Saúde estima que atinge 190 milhões de crianças em todo o mundo, sobretudo em África e na Ásia. Anualmente são cerca de 670 mil as crianças que morrem por deficiência em vitamina A, e mais de 250 mil as que ficam cegas. O projeto do arroz dourado iniciou-se na década de 80 e poderá em breve ser autorizada a primeira variedade comercial (nas Filipinas). E é aqui que começam os problemas. Apesar das três décadas de investigação, e das dezenas de milhões de dólares em financiamentos, quase nada está publicado na literatura científica sobre o desempenho e segurança deste transgénico. O arroz dourado só pode apresentar-se como solução válida se o beta-caroteno que possui (que lhe dá a cor alaranjada e pode ser usado pelo organismo para construir vitamina A) for estável no armazenamento (exposição à luz e à humidade) e na preparação (cozer, fritar, assar) do cereal. No entanto nenhum estudo foi publicado sobre esse aspeto. Também quase nada se sabe sobre a sua biodisponibilidade (a capacidade de ser absorvido e utilizado pelo organismo). Foi publicado um único artigo científico, cuja conclusão positiva é ensombrada por diversas limitações técnicas (baixo número de voluntários, condições físicas não homogéneas, arroz com muito baixo teor de beta-caroteno e, o mais grave de tudo, inclusão de manteiga na preparação do arroz – algo que dificilmente aconteceria realisticamente numa situação de subnutrição, muito embora seja determinante para a absorção do caroteno).

A questão do risco associado ao consumo deste arroz também tem sido secundarizada pelos seus promotores. Atualmente já ninguém põe em causa o facto de que a introdução de genes numa planta afeta (de forma não controlável) o comportamento de genes já existentes nessa planta: milhares de genes pré-existentes podem alterar o seu padrão de atividade como consequência direta da manipulação genética. Torna-se por isso incontornável a necessidade de avaliar a planta resultante de forma abrangente e detalhada por forma a detetar eventuais alterações que criem ou aumentem a sua toxicidade, alergenicidade ou outros impactos negativos. Isto é uma análise extremamente complexa (porque as alterações podem tornar-se visíveis apenas perante determinadas condições ambientais, por exemplo) que nunca foi feita para o arroz dourado (ou, se foi feita, nunca foi publicada).

Quais são os riscos diretos para a saúde do consumo regular de arroz dourado? Esta pergunta, das mais cruciais em toda a controvérsia, só pode ser respondida conjugando diferentes tipologias de informação, a primeira das quais se prende com o seu perfil metabólico e bioquímico: antes do mais é necessário saber se e em que medida a composição total do arroz dourado difere da do arroz convencional. Só que não existe até hoje qualquer publicação científica com esta avaliação sistemática básica.

Outra linha de informação preliminar absolutamente necessária à avaliação de risco é relativa a testes alimentares em animais de laboratório. E, mais uma vez, não existe qualquer estudo publicado nesta área. O escândalo rebentou em 2009 quando veio a público que tinham sido feitos testes em crianças chinesas sem que toda a investigação prévia normal tivesse sido realizada. Numa carta aberta assinada por 22 cientistas este trabalho foi criticado por não respeitar a ética científica e ter usado como cobaias crianças de uma zona rural da China e sem que as famílias dessem o seu consentimento informado.

O artigo científico relativo a esta pesquisa foi publicado este ano de 2012 e voltou a lançar o desconforto. O governo chinês negou que tivesse autorizado o estudo e os três cientistas chineses referidos na publicação negaram ter conhecimento da utilização de arroz transgénico nas experiências que conduziram. Não existem ainda reações oficiais por parte do cientista que liderou o trabalho.

Toda esta problemática poderia ser evitada se, em vez de gastar dinheiro em soluções que não se adaptam nem resolvem o problema apesar das décadas de promessas, a sociedade começasse por avaliar e selecionar as soluções que já deram provas de segurança, aceitabilidade local e eficácia a baixo preço. Essas soluções existem, porque senão todas as sociedades primitivas teriam avitaminose A.

Também existem soluções de emergência e de intervenção rápida com provas dadas: veja-se por exemplo o trabalho desenvolvido pela associação Helen Keller International e a sua batata laranja (não transgénica). Modas como a engenharia genética vão passar com o tempo, porque é essa a sua natureza – convém que aprendamos a ver para lá da miragem passageira.

Margarida Silva, bióloga 
Outubro 2012

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